"- E que somos nós? - exclamou Ega. - Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão..."
Os Maias

domingo, 16 de maio de 2010

Adeus

Ainda andava no Liceu quando decorei este poema, um dos mais bonitos de sempre, de tantas vezes o declamar no silêncio do meu quarto.  De tal modo que ainda o tenho gravado cravado em mim.
Se não estivesse no manual de Português A, provavelmente não o teria procurado, mas estava ali diante de mim, e decorei-o, sabendo que aquilo que o autor expressava, era algo tão verdadeiro e cruel como o fim de um grande amor. O fim. Todos,  em um ou outro momento, nada temos para acrescentar, gastam-se as palavras, e tantas vezes isso significa afinal que tanto ficou por dizer...
Temia passar por isso, tal como hoje, mas conseguia prenunciar a dor de se gastar um sentimento. A dor de se gastarem emoções. Deixam de haver fantasias, deixo de tremer, e não há friozinhos na barriga. Só quando isso deixa de ser uma dor - e só nessa altura - já não resta nada: não se passa nada e por isso já não é a hora sequer de nos debruçarmos sobre essa possibilidade. Mas é preciso que nada reste!!



ADEUS

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



EUGÉNIO DE ANDRADE

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